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quinta-feira, 26 de maio de 2016

Violência de gênero no Brasil e a questão da cidadania das mulheres


“A origem definitiva da barbárie é a própria cultura (...)
Na medida em que a própria cultura é a origem da barbárie e da intolerância, a conclusão inevitável é que o único modo de superar a intolerância e a violência é separar da cultura o núcleo do ser do sujeito, a sua essência universal...
Slavoj Žižek



O caso de estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos em uma comunidade da Zona Oeste do Rio[i] não apenas ganhou rapidamente repercussão nas “redes sociais” virtuais (twitter, facebook etc.), trazendo novamente à tona um problema social recorrente em nosso país – os casos de assassinatos ou graves agressões contra as mulheres, como também continua sensibilizando a opinião pública sob as mais distintas formas[ii].
Nos documentos aprovados na Resolução 48/104 da ONU, em 1993, a violência de gênero foi definida como “…qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (Leila Linhares BARSTED, 2011, p. 351). A partir dessa nova compreensão acerca das relações sociais, os maus-tratos físicos e psicológicos sofridos pelas mulheres muitas vezes no âmbito do espaço privado (doméstico) e em meio a relações conjugais e familiares, assédio sexual, estupros,  espancamento e assassinato de mulheres, passam a ser percebidos com um olhar totalmente diferente daquele que era regido pela lógica de nossa cultura machista de raízes profundamente patriarcais.
Evidentemente, a violência de gênero não se expressa apenas no caso de meninas e adolescentes, vitimadas brutalmente pela violência sexual, mas também ocorre em situações de assédio e violência sexual contra trabalhadoras domésticas, assim como em situações de trabalho precário nas zonas rurais, nas quais as deficiências de infraestrutura sobrecarregam principalmente as mulheres; entre os povos indígenas brasileiros, onde mulheres muitas vezes são vítimas da discriminação étnico-racial e da violência, incluindo a violência sexual; no caso das mulheres negras, no contexto de uma profunda articulação social existente entre discriminações étnico-raciais e as discriminações da ordem de gênero (Ibid., 348-351). Quanto ao assunto, valeria também a pena” assistir ao documentário “Canto de Cicatriz”, de Laís Chaffe (disponível no YouTube).


O que se exige das esferas governamentais nessas situações de violência? Obviamente, a punição dos agressores e a proteção das vítimas, a implementação de políticas públicas, legislações e ações contra a violência em suas diversas formas de manifestação (na família, no trabalho, na sociedade civil e, muitas vezes, internamente às próprias instituições do Estado, como, por exemplo, no caso da falta de representatividade das mulheres nas mais distintas esferas políticas!), tornam-se, nesse sentido, exigências constantes no contexto da sociedade brasileira.
Além de nos sensibilizar profundamente, o sofrimento das mulheres nos casos de agressão e estupro se apresenta como objeto de necessária reflexão nos mais diversos contextos e espaços socais: os problemas da ordem de gênero passam, inevitavelmente, por redefinições, “ressignificações” e mudanças paradigmáticas, sendo moldados pelos indivíduos nas situações históricas concretas nas quais eles se encontram.
Quer concebendo a violência contra as mulheres ao nível da ideologia (enquanto resultado da “dominação masculina”), quer enxergando a violência como uma expressão do patriarcado (entendido aqui como sistema de dominação/ exploração), na interseção das discussões sobre raça, relações de gênero e de classe, a academia não deixou de realizar a problematização acerca da reprodução da violência de gênero  (cf. Cecília SANTOS & Wânia IZUMINO, 2005).
Nos estudos recentes sobre a violência praticada contra as mulheres (em espaços domésticos, p.ex.), aprofundamentos teóricos têm o mérito de repensar seriamente (e com o devido rigor conceitual) as categorias previamente estabelecidas (homens “pré-concebidos” como algozes e as mulheres como vítimas), relativizando a perspectiva da “dominação-vitimização” ao encenar, no próprio plano teórico, diga-se de passagem, o protagonismo das mulheres (Ibid., 2005).
No âmbito da esfera pública brasileira, a Constituição Federal de 1988 reconheceu a plena cidadania das mulheres. Também não se pode desconsiderar mais a significativa atuação do movimento feminista no Brasil, seja no plano institucional, seja nos enfrentamentos processados na dinâmica da cultura). Nesses espaços, a criação e a implementação de políticas públicas, bem como o engendramento de serviços de atenção a mulheres em situação de violência, explicitam avanços significativos na luta diária.
No Legislativo, destacam-se: a tipificação do assédio sexual como crime, a alteração de diversos artigos do Código Penal (claramente discriminatórios) e a revogação do artigo relativo ao crime de adultério (culturalmente utilizado como argumento contra as mulheres). Ademais, em 2005, 

A nova redação do artigo 226 do Código Penal, relativo aos Crimes contra a Dignidade Sexual, aumenta a punição se o agente agressor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela. Por essa nova redação fica definitivamente caracterizado o reconhecimento do estupro praticado nas relações por marido ou por companheiro. (Leila Linhares BARSTED, 2011, p. 357).

No Artigo 213 do Código Penal, o atentado violento ao pudor foi incluído na definição de estupro, que passou a ter como vítimas tanto homens como mulheres (2009). Por outro lado, Leila Barsted nos lembra que o histórico descompasso entre os tratados internacionais ratificados pelo Brasil e a atuação da magistratura brasileira, principalmente no que diz respeito à indulgência do Estado brasileiro em relação aos autores de atos de violência, em casos de violência doméstica e na ocorrência de violência sexual contra as meninas, foi motivo de intensos debates em nossa história recente.
Entre os anos de 2002 e 2006, “ONGs feministas se articularam, sob a forma de um consórcio, para a elaboração de um Anteprojeto de Lei. Essa articulação incluiu o diálogo com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com Poder Legislativo e com os movimentos de mulheres” (cf. Leila Linhares BARSTED, 2011, p. 359). Paralelamente ao processo de elaboração e tramitação do PL que redundou na Lei 11.340/06,

(...) organizações de direitos humanos apoiaram a farmacêutica Maria da Penha Fernandes na sua denúncia junto à Comissão de Direitos Humanos da OEA. Essa denúncia referia-se à omissão do Estado brasileiro, que por quase 20 anos, não promoveu julgamento do seu ex-marido, autor de duas tentativas de homicídio contra ela. Essa Comissão aceitou a denúncia e condenou o Brasil a promover o julgamento do agressor, indenizar a vítima e elaborar uma lei de violência contra a mulher (Ibid., p. 359).

Justamente nesse contexto surge a Lei Maria da Penha (11.340/06). No que concerne aos mecanismos institucionais criados nessa época, o Governo Federal deu, em 2003, reconhecimento de status ministerial à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Houve, também, a aprovação do Pacto de Enfrentamento da Violência contra a Mulher (2007).  Aqui, o Pacto estimulou “a articulação federativa por meio de convênios com estados e municípios, disponibilizando recursos financeiros para criação de serviços, compra de equipamentos, promoção de cursos de capacitação de agentes públicos, dentre outras ações” (Ibid., p. 363).
Em relação ao acesso à justiça, pode-se destacar, ainda que rapidamente, a ampliação dos serviços especializados para a atenção a mulheres em situação de violência. Além disso, entre os anos de 2003 e 2010,

(...) diversas secretarias, coordenadorias e superintendências estaduais da mulher, bem como organizações e movimentos de mulheres, desenvolveram, com apoio da SPM, projetos de educação pública, de capacitação de funcionários governamentais, de produção de publicações e campanhas, dentre outras ações voltadas para a eliminação da violência contra as mulheres (Ibid., p. 363).

Não se pode esquecer: em março de 2015 entrou em vigor da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104). Agora, o que esse rápido e (realmente) despretensioso apanhado histórico nos sinaliza? De um lado, que o combate à violência de gênero se dá nas mais distintas esferas. De outro, que a conquista da cidadania plena das mulheres, seja no âmbito das instituições, seja no plano da cultura, é um processo (ainda) em construção, quer do ponto de vista do re-conhecimento”, quer por meio das políticas públicas de Estado. Houve pouca mudança, por exemplo, no que se refere à descriminalização do aborto ou na ampliação dos permissivos legais previstos no Código Penal. Nesse cenário marcado por avanços (e possíveis retrocessos), a batalha pela emancipação das mulheres se configura como tarefa do Estado brasileiro e dever de cada cidadão, de cada ser humano que anseia pelo fim da violência de gênero. Então, o que se pede urgentemente de nós? Obviamente, além do cuidado da(s) vítima(s), a vigilância constante de nossas instituições. Permitam-me uma metáfora zizekiana a título de conclusãobombardear o Estado com exigências políticas até que a cidadania plena das mulheres seja plenamente reconhecida por todxs (sem exceções!).

Robson da Costa de Souza é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciado em Ciências Sociais pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Referências
BARSTED, Leila. O progresso das mulheres no enfrentamento da violência. In: BARSTED, Leila (Org.). O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010. Rio de Janeiro: CEPIA ; Brasília: ONU Mulheres, 2011. pp. 346-382. Disponível em: http://onumulheres.org.br/wp-content/themes/vibecom_onu/pdfs/progresso.pdf. Acesso em: 26 mai. 2016.
IZUMINO, Wânia Pasinato e SANTOS, Cecília MacDowell dos. Violência contra as mulheres e violência de gênero. Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. In: Revista Estudios Interdisciplinários de America Latina y El Caribe. Israel: Universidade de Tel Aviv, Vol.16 – nº 1, 2005, pag. 147-164. Disponível em: http://www.nevusp.org/downloads/down083.pdf. Acesso em: 
PINSKY, Carla Bassanezi e PEDRO, Joana Maria (Org.). A Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013.
ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.



[i] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/26/politica/1464275134_153470.html.
[ii] Outras relatos que ganharam repercussão: o assassinato de Sandra Gomide, em 2000; o caso Eloá, em 2008; e, mais recentemente, o caso Eliza Samudio, em 2010.


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