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quinta-feira, 5 de maio de 2016

"Desconstruindo" o "sexo da dominação": breve comentário crítico a um texto de Nancy Fraser


“Las identidades sociales son construidas discursivamente en contextos sociales históricamente determinados; son complejas y plurales; y se modifican a través del tiempo. Entonces, uno de los aportes de una teoría del discurso para la política feminista es la comprensión de las identidades sociales en su complejidad socio-cultural, desmitificando así las perspectivas estáticas, univariables y esencialistas de la identidad de género.”
Nancy Fraser (Filósofa)

Num artigo instigante e enriquecedor, Nancy FRASER (2015) se propões a debater sobre a inegável relação existente entre as “teorias do discurso” e os estudos acerca das identidades de gênero. Primeiramente, a autora parte da noção básica de que a discussão passa inevitavelmente pela temática das “construções de linguagem” (a categoria “gênero” se distingue aqui da noção lacaniana de “diferença sexual. Nesse sentido, é compreendida como prática “discursivamente” engendrada). Em seguida, a partir do diálogo profícuo com as teorias de Jacques Lacan (Ibid., pp. 183-189) e Julia Kristeva (Ibid., pp. 189-195), a filósofa estadunidense descreve, do ponto de vista da prática política feminista, os “ganhos teóricos” (ou não) advindos dessa possível interlocução (temática que empresta nome ao título do artigo, diga-se de passagem). Por último, “levanta” a pergunta pelo assunto da hegemonia cultural (como se dá a “legitimidade cultural” dos grupos dominantes).
O artigo trabalha inicialmente com a seguinte hipótese: o discurso “essencialista” sobre as relações sociais de gênero não se vincula exclusivamente às contribuições trazidas pela Biologia (ou pela Psicologia), mas, sim, ao conjunto das descrições sobre os sentidos e as práticas sociais acerca do que significa “ser homem” ou “ser mulher” em nossas sociedades (Ibid., pp. 180-183). Se essas representações sociais homogeneizantes das práticas sociais, disponíveis quer no senso-comum, quer no contexto de rígidos e inflexíveis modelos teóricos, tornam-se “reificadas” numa “ordem social simbólica” monolítica e omnipresente, essas subjetividades passam a ser descritas invariavelmente em termos binários e de modo permanente (o “feminino” contrapondo-se radicalmente ao “masculino”; a “mulher” ao “homem”; a heterossexualidade à homossexualidade etc.).
Fonte da figura: pixabay.com. Segundo uma conhecida definição, o "gênero" (construção cultural) é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado (base material).

 De um lado, a filósofa procura reforçar o argumento de que as identidades de gênero, enquanto práticas historicamente determinadas (leia-se: “engendradas” pela/ na “discursividade da vida social”), moldam “significativamente” a atuação dos sujeitos (individuais e coletivos). De outro, trabalha-se com a noção de que as descrições que compõem uma identidade social “entram” e saem “de cena” sob o pano de fundo das possibilidades interpretativas disponíveis em contextos sociais múltiplos e, não menos importante, socialmente determinados (ou, nos termos do “primeiro” Wittgenstein, “os limites do mundo são os limites de minha linguagem”.)
Como a formação das identidades sociais e dos grupos ocorre segundo a lógica das “práticas discursivas”, as análises da ordem de gênero não podem abster-se do “contexto social da comunicação” (com faz, p.ex., o estruturalismo – ou, segundo a autora, aquelas perspectivas teóricas baseadas nas teorias de Lacan). Sempre que uma perspectiva teórica incorre no “erro” básico de situar-se além (ou aquém) dos “sujeitos da fala”, perde-se de vista aquele conjunto de questões vinculadas ao poder e à desigualdade (Ibid., pp. 183-189). Portanto, o modelo estruturalista, ao se abstrair da “parole” (i.e., fixando-se, exclusivamente, no código), tende a ignorar o sujeito da fala, suas práticas sociais e seu caráter de agente político (Ibid., p. 184), argumenta Fraser.
Embora essa dimensão da linguagem seja tratada como “uma prática social situada num contexto socialmente determinado”, os discursos não apenas são múltiplos e plurais, mas surgem, se modificam e desaparecem ao longo do tempo. Dessa forma, as identidades sociais não se constroem de forma definitiva: mudam juntamente com as práticas sociais e as lealdades dos agentes.  
Aqui, Nancy Fraser, refugiando-se no conceito gramsciano de “hegemonia”, elucida o debate sobre a interseção entre poder, desigualdade e discurso. Deve-se, nesse sentido, levar em conta a “lógica da hierarquização”, pois as identidades de gênero não se definem necessariamente de maneira igualitária – nem todos os discursos têm igual legitimidade (Ibid., p. 182), argumenta ela. Em contextos sociais diversificados, o “ser mulher”, por exemplo, configura-se não apenas pelo repertório de possibilidades com que opera, mas se constitui fundamentalmente de modo periférico ou latente.



Gramsci 1922
Em Gramsci, "hegemonia" é a "organização do consentimento".

Em situações caracterizadas por “desigualdades estruturais”, as definições e interpretações que vão contra o interesse da(s) mulher(es) ganham legitimidade através do discurso hegemônico. Nessa perspectiva, este se reproduziria ao estabelecer definições legítimas acerca das situações e das necessidades sociais, ou seja, delimitando as fronteiras entre os acordos (e desacordos) legítimos (e  legitimados) segundo a lógica de uma determinada agenda política (hegemônica).
De acordo com essa compreensão teórica de natureza “marxista”, esbarramos nesse ponto com aquelas descrições “autoevidentes” da/sobre (a) realidade social (i.e., os discursos “inquestionáveis” – descrições socialmente “necessárias” e com pretensões de validade permanente). Semelhantemente à noção de “ideologia”, a “hegemonia” se expressa na posição discursiva privilegiada dos grupos sociais dominantes. Parafraseando Marx, as ideias do “sexo” dominante são, em cada época, as ideias dominantes.
Como a legitimidade cultural está em constante negociação, em contínua disputa, “as perspectivas alternativas, as múltiplas posições de discurso, as disputas simbólicas pelos sentidos das práticas sociais, as lutas pelas definições hegemônicas e contra hegemônicas das situações sociais, os conflitos pela interpretação das necessidades sociais” (Ibid., p. 188), tornam-se, nesse aspecto, objetos de interesse, crítica e resistência no conjunto das práticas políticas emancipatórias.
Evidentemente, nosso interesse pela temática segue em diálogo com essa rica contribuição teórica, facilitando o redirecionamento radical de nossas categorias analíticas: em termos habermasianos, as relações de gênero, no contexto dos grupos religiosos, (também) precisariam ser analisadas à luz dos “fluxos comunicativos” (ver, principalmente, Robson SOUZA, 2015). Justamente dessa discussão nasceu o projeto “Religião, Gênero e Habilidades Sociais: Considerações acerca da Condição Feminina no Protestantismo Brasileiro”.
Trata-se de um projeto de pesquisa em fase de execução. A princípio, pretendemos analisar grupos evangélicos distintos e expressivos de 3 (três) capitais brasileiras (Recife, Vitória e Rio de Janeiro). Em contextos religiosos específicos, buscaremos verificar – de modo comparativo e interdisciplinar – em que medida as múltiplas configurações discursivo-teológicas presentes no protestantismo brasileiro de origem missionária e pentecostal dialogam (ou não) com as políticas públicas e culturais (ou mesmo iniciativas da sociedade civil) de enfrentamento ao “sexismo”, ao racismo e à intolerância religiosa.
Assim, através de entrevistas qualitativas com fiéis, pastoras(es) e lideranças políticas de expressivos segmentos religiosos, pretendemos fortalecer nossa compreensão acerca dos processos sociais que intervêm na construção e redefinição das relações sociais de gênero e étnico-raciais, seja no interior dos grupos religiosos identificados, seja no que se refere à interface entre esses movimentos religiosos e os contextos educacionais e culturais que lhe servem de suporte.
Produzindo dados, reflexão e conhecimentos sobre as percepções e práticas dos diferentes atores e atrizes envolvidos, pretendemos facilitar, no Estado e na sociedade civil, a difusão de uma agenda com ações e temas voltados à promoção dos direitos humanos, ao combate à violência de gênero e ao racismo, bem como inspirar o fortalecimento da implementação de políticas públicas de educação para a promoção do respeito ao pluralismo religioso. Nessa perspectiva, esse blog quer ser um canal de divulgação de nossa pesquisa. Contamos com a ajuda e o incentivo de todxs!

Robson da Costa de Souza é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciado em Ciências Sociais pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Referências
CORRÊA, Mariza. “Bourdieu e o sexo da dominação”. Revista Novos Estudos, CEBRAP, n. 54, pp. 43-53, jul. 1999.
FRASER, Nancy. Los usos y abusos de las teorías francesas del discurso para la política feminista. Diferencia(s): revista de teoría social contemporánea, v.1. n. 1, 2015, pp. 179-199. Disponível em: <http://www.revista.diferencias.com.ar/index.php/diferencias/issue/viewIssue/1/2>. Acesso em: 05 mai. 2016.
SOUZA, Robson. Pós-estruturalismo e religião: as novas possibilidades analíticas nos estudos sobre as relações sociais de gênero. Mandrágora, v.21. n. 1, 2015, pp. 207-236. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/6007/5062 >. Acesso em: 05 mai. 2016.

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