Postagem em destaque

Sobre o blog

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Violência de gênero no Brasil e a questão da cidadania das mulheres


“A origem definitiva da barbárie é a própria cultura (...)
Na medida em que a própria cultura é a origem da barbárie e da intolerância, a conclusão inevitável é que o único modo de superar a intolerância e a violência é separar da cultura o núcleo do ser do sujeito, a sua essência universal...
Slavoj Žižek



O caso de estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos em uma comunidade da Zona Oeste do Rio[i] não apenas ganhou rapidamente repercussão nas “redes sociais” virtuais (twitter, facebook etc.), trazendo novamente à tona um problema social recorrente em nosso país – os casos de assassinatos ou graves agressões contra as mulheres, como também continua sensibilizando a opinião pública sob as mais distintas formas[ii].
Nos documentos aprovados na Resolução 48/104 da ONU, em 1993, a violência de gênero foi definida como “…qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado” (Leila Linhares BARSTED, 2011, p. 351). A partir dessa nova compreensão acerca das relações sociais, os maus-tratos físicos e psicológicos sofridos pelas mulheres muitas vezes no âmbito do espaço privado (doméstico) e em meio a relações conjugais e familiares, assédio sexual, estupros,  espancamento e assassinato de mulheres, passam a ser percebidos com um olhar totalmente diferente daquele que era regido pela lógica de nossa cultura machista de raízes profundamente patriarcais.
Evidentemente, a violência de gênero não se expressa apenas no caso de meninas e adolescentes, vitimadas brutalmente pela violência sexual, mas também ocorre em situações de assédio e violência sexual contra trabalhadoras domésticas, assim como em situações de trabalho precário nas zonas rurais, nas quais as deficiências de infraestrutura sobrecarregam principalmente as mulheres; entre os povos indígenas brasileiros, onde mulheres muitas vezes são vítimas da discriminação étnico-racial e da violência, incluindo a violência sexual; no caso das mulheres negras, no contexto de uma profunda articulação social existente entre discriminações étnico-raciais e as discriminações da ordem de gênero (Ibid., 348-351). Quanto ao assunto, valeria também a pena” assistir ao documentário “Canto de Cicatriz”, de Laís Chaffe (disponível no YouTube).


O que se exige das esferas governamentais nessas situações de violência? Obviamente, a punição dos agressores e a proteção das vítimas, a implementação de políticas públicas, legislações e ações contra a violência em suas diversas formas de manifestação (na família, no trabalho, na sociedade civil e, muitas vezes, internamente às próprias instituições do Estado, como, por exemplo, no caso da falta de representatividade das mulheres nas mais distintas esferas políticas!), tornam-se, nesse sentido, exigências constantes no contexto da sociedade brasileira.
Além de nos sensibilizar profundamente, o sofrimento das mulheres nos casos de agressão e estupro se apresenta como objeto de necessária reflexão nos mais diversos contextos e espaços socais: os problemas da ordem de gênero passam, inevitavelmente, por redefinições, “ressignificações” e mudanças paradigmáticas, sendo moldados pelos indivíduos nas situações históricas concretas nas quais eles se encontram.
Quer concebendo a violência contra as mulheres ao nível da ideologia (enquanto resultado da “dominação masculina”), quer enxergando a violência como uma expressão do patriarcado (entendido aqui como sistema de dominação/ exploração), na interseção das discussões sobre raça, relações de gênero e de classe, a academia não deixou de realizar a problematização acerca da reprodução da violência de gênero  (cf. Cecília SANTOS & Wânia IZUMINO, 2005).
Nos estudos recentes sobre a violência praticada contra as mulheres (em espaços domésticos, p.ex.), aprofundamentos teóricos têm o mérito de repensar seriamente (e com o devido rigor conceitual) as categorias previamente estabelecidas (homens “pré-concebidos” como algozes e as mulheres como vítimas), relativizando a perspectiva da “dominação-vitimização” ao encenar, no próprio plano teórico, diga-se de passagem, o protagonismo das mulheres (Ibid., 2005).
No âmbito da esfera pública brasileira, a Constituição Federal de 1988 reconheceu a plena cidadania das mulheres. Também não se pode desconsiderar mais a significativa atuação do movimento feminista no Brasil, seja no plano institucional, seja nos enfrentamentos processados na dinâmica da cultura). Nesses espaços, a criação e a implementação de políticas públicas, bem como o engendramento de serviços de atenção a mulheres em situação de violência, explicitam avanços significativos na luta diária.
No Legislativo, destacam-se: a tipificação do assédio sexual como crime, a alteração de diversos artigos do Código Penal (claramente discriminatórios) e a revogação do artigo relativo ao crime de adultério (culturalmente utilizado como argumento contra as mulheres). Ademais, em 2005, 

A nova redação do artigo 226 do Código Penal, relativo aos Crimes contra a Dignidade Sexual, aumenta a punição se o agente agressor é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela. Por essa nova redação fica definitivamente caracterizado o reconhecimento do estupro praticado nas relações por marido ou por companheiro. (Leila Linhares BARSTED, 2011, p. 357).

No Artigo 213 do Código Penal, o atentado violento ao pudor foi incluído na definição de estupro, que passou a ter como vítimas tanto homens como mulheres (2009). Por outro lado, Leila Barsted nos lembra que o histórico descompasso entre os tratados internacionais ratificados pelo Brasil e a atuação da magistratura brasileira, principalmente no que diz respeito à indulgência do Estado brasileiro em relação aos autores de atos de violência, em casos de violência doméstica e na ocorrência de violência sexual contra as meninas, foi motivo de intensos debates em nossa história recente.
Entre os anos de 2002 e 2006, “ONGs feministas se articularam, sob a forma de um consórcio, para a elaboração de um Anteprojeto de Lei. Essa articulação incluiu o diálogo com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com Poder Legislativo e com os movimentos de mulheres” (cf. Leila Linhares BARSTED, 2011, p. 359). Paralelamente ao processo de elaboração e tramitação do PL que redundou na Lei 11.340/06,

(...) organizações de direitos humanos apoiaram a farmacêutica Maria da Penha Fernandes na sua denúncia junto à Comissão de Direitos Humanos da OEA. Essa denúncia referia-se à omissão do Estado brasileiro, que por quase 20 anos, não promoveu julgamento do seu ex-marido, autor de duas tentativas de homicídio contra ela. Essa Comissão aceitou a denúncia e condenou o Brasil a promover o julgamento do agressor, indenizar a vítima e elaborar uma lei de violência contra a mulher (Ibid., p. 359).

Justamente nesse contexto surge a Lei Maria da Penha (11.340/06). No que concerne aos mecanismos institucionais criados nessa época, o Governo Federal deu, em 2003, reconhecimento de status ministerial à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Houve, também, a aprovação do Pacto de Enfrentamento da Violência contra a Mulher (2007).  Aqui, o Pacto estimulou “a articulação federativa por meio de convênios com estados e municípios, disponibilizando recursos financeiros para criação de serviços, compra de equipamentos, promoção de cursos de capacitação de agentes públicos, dentre outras ações” (Ibid., p. 363).
Em relação ao acesso à justiça, pode-se destacar, ainda que rapidamente, a ampliação dos serviços especializados para a atenção a mulheres em situação de violência. Além disso, entre os anos de 2003 e 2010,

(...) diversas secretarias, coordenadorias e superintendências estaduais da mulher, bem como organizações e movimentos de mulheres, desenvolveram, com apoio da SPM, projetos de educação pública, de capacitação de funcionários governamentais, de produção de publicações e campanhas, dentre outras ações voltadas para a eliminação da violência contra as mulheres (Ibid., p. 363).

Não se pode esquecer: em março de 2015 entrou em vigor da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104). Agora, o que esse rápido e (realmente) despretensioso apanhado histórico nos sinaliza? De um lado, que o combate à violência de gênero se dá nas mais distintas esferas. De outro, que a conquista da cidadania plena das mulheres, seja no âmbito das instituições, seja no plano da cultura, é um processo (ainda) em construção, quer do ponto de vista do re-conhecimento”, quer por meio das políticas públicas de Estado. Houve pouca mudança, por exemplo, no que se refere à descriminalização do aborto ou na ampliação dos permissivos legais previstos no Código Penal. Nesse cenário marcado por avanços (e possíveis retrocessos), a batalha pela emancipação das mulheres se configura como tarefa do Estado brasileiro e dever de cada cidadão, de cada ser humano que anseia pelo fim da violência de gênero. Então, o que se pede urgentemente de nós? Obviamente, além do cuidado da(s) vítima(s), a vigilância constante de nossas instituições. Permitam-me uma metáfora zizekiana a título de conclusãobombardear o Estado com exigências políticas até que a cidadania plena das mulheres seja plenamente reconhecida por todxs (sem exceções!).

Robson da Costa de Souza é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciado em Ciências Sociais pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Referências
BARSTED, Leila. O progresso das mulheres no enfrentamento da violência. In: BARSTED, Leila (Org.). O Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010. Rio de Janeiro: CEPIA ; Brasília: ONU Mulheres, 2011. pp. 346-382. Disponível em: http://onumulheres.org.br/wp-content/themes/vibecom_onu/pdfs/progresso.pdf. Acesso em: 26 mai. 2016.
IZUMINO, Wânia Pasinato e SANTOS, Cecília MacDowell dos. Violência contra as mulheres e violência de gênero. Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. In: Revista Estudios Interdisciplinários de America Latina y El Caribe. Israel: Universidade de Tel Aviv, Vol.16 – nº 1, 2005, pag. 147-164. Disponível em: http://www.nevusp.org/downloads/down083.pdf. Acesso em: 
PINSKY, Carla Bassanezi e PEDRO, Joana Maria (Org.). A Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013.
ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.



[i] http://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/26/politica/1464275134_153470.html.
[ii] Outras relatos que ganharam repercussão: o assassinato de Sandra Gomide, em 2000; o caso Eloá, em 2008; e, mais recentemente, o caso Eliza Samudio, em 2010.


segunda-feira, 23 de maio de 2016

"Todos iguais... Todos?" - Eleni Varikas e as "antinomias do universalismo"

“O poder de identificar, de nomear, de definir o que é um homem, uma mulher, um judeu, um árabe, faz parte dos procedimentos de categorização hierárquica e de legitimação das instituições, das práticas, dos sistemas de valores, sobre os quais repousa essa categorização. Definir é um procedimento redutor e... implacável, exercido conforme a lógica da cópula: ‘é assim, não de outro modo.’”
Eleni VARIKAS

“A abstrata nudez de ser unicamente humano e nada mais.”
Hannah ARENDT

Nesses tempos de proliferação (não-totalizável) das diferenças múltiplas e plurais (sobre o assunto, ver, também, Antônio Flávio PIERUCCI, 1999), alguma categoria política seria forte (e abrangente) o suficiente para conseguir englobar satisfatoriamente a situação de exclusão vivida muitas vezes por atrizes e atores sociais tão distintos como mulheres, negros, "dissidentes" sexuais, judeus, trabalhadores imigrantes etc.?
Com o objetivo de buscar respostas para perguntas difíceis como essa, ninguém menos que Slavoj ŽIŽEK (2013) sugeriu recentemente o seguinte exercício teórico-prático: abstrair o fenômeno-a-ser-analisado de seu rico contexto histórico, buscando “perceber claramente a determinação conceitual que forma o núcleo da coisa”. A partir dessa provocação žižekiana, fica registrada aqui uma importante consideração: que nome dar à “coisa”? Pergunta-se de outro modo: é possível nomeá-la? Precisamos? Devemos? Queremos?
Eleni VARIKAS, autora de “A Escória do Mundo: figuras do pária” (livro publicado pela editora Unesp), assume para si essa árdua tarefa, arriscando-se encontrar no “pária”, palavra de significação dúbia e, muitas vezes, de sentido pejorativo no âmbito da linguagem, mas reconhecidamente presente no vocabulário político ocidental, essa designação possível (isto é, o debate não se refere apenas ao sistema de castas indiano, mas também ao pária enquanto metáfora política”. A discussão como um todo oscila entre essas duas significações).
Caminhando com o pressuposto de que dar voz (e palavra) ao sujeito excluído do/ pelo discurso hegemônico se constitui numa forma exemplar de “empoderamento” (início mesmo de uma emancipação que ainda não vale para todxs!), a autora desenvolve um diálogo crítico com a literatura: quer encontrar aquelas histórias que, “interligadas por uma rede de analogias, permitem aproximações inesperadas entre fontes variadas, diferentes momentos e versões diferentes de um mesmo relato” (2014, p. 25). São as histórias e lendas de párias!
De Mary Wollstonecraft, importante figura na publicização das demandas das mulheres por direitos iguais, à Flora Tristan, passando por outros filósofos(as) (tais como: Du Bois, Hannah Arendt, Walter Benjamin etc.), escritos e textos geralmente negligenciados pela história, o conjunto de “narrativas do pária” (e sobre o pária!) se faz presente num resgate histórico-literário promissor. Se, como quer György LUKÁCS (2011, p. 414), a literatura tem esse poder extraordinário de “apresentar de maneira figurada a gênese histórica concreta” de uma “totalidade histórica em devir”, constitui-se numa questão bastante complexa para ser abordada nesse breve texto. De qualquer forma, as “representações do pária” remetem à própria lógica da colonização, ou seja, acompanhando o movimento da “conquista”, entre os séculos XVI e XVIII, fazem parte, originalmente, de um “saber colonial” de portugueses, holandeses, franceses e ingleses.

Pariah woman in front of her hut, near Calcutta in 1851
Fonte: Wikimedia Commons
Aqui, a designação do “outro” extraeuropeu não fugiu aos mecanismos de inteligibilidade e hierarquização atreladas a um processo historicamente discursivo sobre o “si mesmo” europeu – nesse aspecto, não o “discurso do outro”, mas o discurso “acerca do outro” – a fala sobre o indivíduo que, na percepção do colonizador, estava na maioria das vezes destituído de agência e possibilidades de autoemanciapação (nos termos do historiador marxista Eric Hobsbawm, o “sistema de castas” não deixa de ser uma “tradição inventada”).
Nessa perspectiva, a “genealogia do pária” é caracterizada por tensões e ambivalências. Do ponto de vista meramente histórico, esse conhecimento sobre ele se transformou, ao longo dos anos, no próprio “motor” estruturador de uma administração colonial legitimada e regida fundamentalmente por “categorizações raciais”. Por outro lado, a contradição histórica tem a ver com o fato de que, no contexto da radicalização das Luzes, a figura do pária serviu de crítica à “autoridade arbitrária e à exclusão social e política” (ver, também, Eleni VARIKAS, 2010). 
Assim, após 1780, a adoção de um princípio universal de justiça encontrará na figura do pária, enquanto imagem dotada de “especificidade política” (segundo a autora, os chamados “privilégios negativos”...), o elemento necessário para se realizar o questionamento antiabsolutista da persistência de hierarquias no âmbito das sociedades ocidentais modernas, argumenta VARIKAS. Justamente dessas ambiguidades nasce uma rica metáfora sobre privilégios e exclusões...
Como não consegue se integrar plenamente no horizonte da universalidade burguesa (o tal conceito de “humanidade em geral”), a experiência do pária pressupõe o mais completo desenraizamento. Se, de um lado, a modernidade fez da humanidade o fundamento da comunidade política, de outro, favoreceu a constituição de uma cidadania incompleta para muitos: o pária é “membro de uma casta inferior numa sociedade sem castas. Uma sociedade que deixa perceber o sujeito individual de direitos tanto como átomo abstratamente similar e, por consequência, comparável a todos os outros (aos olhos da lei geral à qual está submetido) quanto como inseparável do grupo de que saiu e, assim sendo, incomparável aos outros (na perspectiva de seus direitos)” (cf. 2014, p. 83).
O destino deles, a exemplo de Phillis Wheatley, primeira mulher negra de origem africana a publicar um livro nos Estados Unidos, “dificilmente se inscreve nos relatos que estruturam nossa visão de modernidade ocidental”, continua VARIKAS (2014, p. 5). No plano das relações sociais, a identidade do pária é sempre-já tensionada por uma situação estrutural ambivalente: “não é tal indivíduo concreto com uma história, amigos, uma profissão, qualidade peculiares, mas o Judeu, o Negro, o Árabe, a Mulher em geral (2014, p. 84).
Nesse aspecto, não há como negar o fato de que, implícita ou explicitamente, a racionalidade dos excluídos e sua capacidade de ascender à humanidade plena, quer no contexto das experiências radicalmente democráticas da sociedade estadunidense, por exemplo, quer em nosso “Brasil brasileiro”, terra de Nosso Senhor e da tão aclamada “democracia racial”, foram sempre postas à prova, mesmo após as experiências abolicionistas do século XIX.
Pergunta-se nesse momento: o pária é uma construção de tipo-ideal (Max Weber)? No plano da abstração teórica, as figuras do pária emergem por meio de analogias. O que essas imagens revelam exatamente? A lógica da exclusão! Sua experiência torna-se sempre-já particularizada: “na medida em que a humanidade como sujeito e fonte de direitos é identificada com o grupo dominante e interpretada por ele, os dominados são colocados na dimensão do particular”, argumenta Eleni VARIKAS.
O pária não lida somente com a dinâmica do preconceito social (nos termos de VARIKAS, uma “percepção subjetiva da diferença do outro”). Embora submetida ao ordenamento jurídico de uma determinada sociedade, a subjetividade pária se vê constantemente excluída do conjunto de direitos que a maioria usufrui. Trata-se, portanto, de uma “condição social objetiva”, defende a autora (2014, pp. 76-82). Condição que se expressa, também, na percepção que o pária tem de si: ele se vê através do olhar inferiorizante do outro.
Nessa perspectiva, (querendo ou não) o pária está “marcado” socialmente (propositalmente entre aspas) – “marcado” como Mulher, Negro, Gay, Lésbica, Imigrante etc. Paradoxalmente, no plano da militância, as práticas políticas dos excluídos explicitam a possibilidade de se partir justamente dessa “marcação” (como sugere, por exemplo, a filósofa Márcia TIBURI), desenvolvendo aquilo que Eleni VARIKAS nomeia (corretamente ou não) de “dignidade pária” (2014, p. 90), mas não se trata evidentemente da única opção política disponível.
Portanto, as contradições da cidadania moderna também se expressam nas práticas políticas do pária – na luta contra a sua invisibilidade, o pária vislumbra a oportunidade de reivindicar, em termos fundamentalmente particularistas, um privilégio que não tem. Por outro lado, a aposta que VARIKAS faz no “pária rebelde” mostra os contornos precisos de uma visão política (ainda) atrelada ao UNIVERSALISMO IRRESTRITO da tradição das Luzes:
“(...) Essa capacidade de transformar a distância crítica num olhar telescópico sobre o mundo, projetado além de sua própria liberação, essa “paixão pela justiça” que impede de tomar sua própria causa como a causa prioritária ou universal, [Hannah] Arendt a atribui, com efeito, ao pária rebelde. Ela não é uma qualidade inerente à opressão, mas sobretudo um dom que o pária recebe assim que se desprende do fatalismo da oposição entre senhores e escravos, para transformar seu sofrimento e amargura na busca de uma justiça generalizada, reivindicada pela humanidade inteira” (Eleni VARIKAS, 2014, p. 146).
Em nosso próximo texto, veremos como essa temática complexa se articula à questão religiosa...

Robson da Costa de Souza é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciado em Ciências Sociais pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
Referências
LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo: Ed. 34, 1999.
TIBURI, Márcia. Democracia hard: homens, feminismo e machismo ao contrário. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/06/democracia-hard-homens-feminismo-e-machismo-ao-contrario/. Acesso em: 23 Mai. 2016.
VARIKAS, Eleni. A Escória do Mundo: figuras do pária. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
____________. Os refugos do mundo: figuras do pária. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 24, n. 69, p. 31-60,    2010 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  22  May  2016.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142010000200003.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013. 

terça-feira, 17 de maio de 2016

Seminário em Rede Educação e Relações Étnico-Raciais

Etnicidade, Gênero e Educação (2016)


O Seminário em Rede Educação e Relações Étnico-Raciais constitui-se numa série de seminários permanentes promovidos no âmbito dos programas de pós-graduação (MPCS-Fundaj/ PPGECI-UFRPE) da Fundaj (Fundação Joaquim Nabuco-PE). Objetivando contribuir com a promoção da equidade nas relações étnico-raciais e de gênero na educação, a instituição fomentará, durante o ano de 2016, o debate sobre Etnicidade, Gênero e Educação.

A 1ª edição do evento será realizada no Cinema do Museu, da Fundaj (Avenida 17 de agosto, 2187, Casa Forte), no dia 13 de junho.




As inscrições podem ser realizadas em: http://www.fundaj.gov.br/index.php?option=com_smartformer&formid=68

O evento será transmitido pelo seguinte link: http://video.rnp.br/portal/transmission.action?idItem=30535 (disponível para acesso somente no dia 13/06, das 7 às 19 horas)

quinta-feira, 5 de maio de 2016

"Desconstruindo" o "sexo da dominação": breve comentário crítico a um texto de Nancy Fraser


“Las identidades sociales son construidas discursivamente en contextos sociales históricamente determinados; son complejas y plurales; y se modifican a través del tiempo. Entonces, uno de los aportes de una teoría del discurso para la política feminista es la comprensión de las identidades sociales en su complejidad socio-cultural, desmitificando así las perspectivas estáticas, univariables y esencialistas de la identidad de género.”
Nancy Fraser (Filósofa)

Num artigo instigante e enriquecedor, Nancy FRASER (2015) se propões a debater sobre a inegável relação existente entre as “teorias do discurso” e os estudos acerca das identidades de gênero. Primeiramente, a autora parte da noção básica de que a discussão passa inevitavelmente pela temática das “construções de linguagem” (a categoria “gênero” se distingue aqui da noção lacaniana de “diferença sexual. Nesse sentido, é compreendida como prática “discursivamente” engendrada). Em seguida, a partir do diálogo profícuo com as teorias de Jacques Lacan (Ibid., pp. 183-189) e Julia Kristeva (Ibid., pp. 189-195), a filósofa estadunidense descreve, do ponto de vista da prática política feminista, os “ganhos teóricos” (ou não) advindos dessa possível interlocução (temática que empresta nome ao título do artigo, diga-se de passagem). Por último, “levanta” a pergunta pelo assunto da hegemonia cultural (como se dá a “legitimidade cultural” dos grupos dominantes).
O artigo trabalha inicialmente com a seguinte hipótese: o discurso “essencialista” sobre as relações sociais de gênero não se vincula exclusivamente às contribuições trazidas pela Biologia (ou pela Psicologia), mas, sim, ao conjunto das descrições sobre os sentidos e as práticas sociais acerca do que significa “ser homem” ou “ser mulher” em nossas sociedades (Ibid., pp. 180-183). Se essas representações sociais homogeneizantes das práticas sociais, disponíveis quer no senso-comum, quer no contexto de rígidos e inflexíveis modelos teóricos, tornam-se “reificadas” numa “ordem social simbólica” monolítica e omnipresente, essas subjetividades passam a ser descritas invariavelmente em termos binários e de modo permanente (o “feminino” contrapondo-se radicalmente ao “masculino”; a “mulher” ao “homem”; a heterossexualidade à homossexualidade etc.).
Fonte da figura: pixabay.com. Segundo uma conhecida definição, o "gênero" (construção cultural) é uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado (base material).

 De um lado, a filósofa procura reforçar o argumento de que as identidades de gênero, enquanto práticas historicamente determinadas (leia-se: “engendradas” pela/ na “discursividade da vida social”), moldam “significativamente” a atuação dos sujeitos (individuais e coletivos). De outro, trabalha-se com a noção de que as descrições que compõem uma identidade social “entram” e saem “de cena” sob o pano de fundo das possibilidades interpretativas disponíveis em contextos sociais múltiplos e, não menos importante, socialmente determinados (ou, nos termos do “primeiro” Wittgenstein, “os limites do mundo são os limites de minha linguagem”.)
Como a formação das identidades sociais e dos grupos ocorre segundo a lógica das “práticas discursivas”, as análises da ordem de gênero não podem abster-se do “contexto social da comunicação” (com faz, p.ex., o estruturalismo – ou, segundo a autora, aquelas perspectivas teóricas baseadas nas teorias de Lacan). Sempre que uma perspectiva teórica incorre no “erro” básico de situar-se além (ou aquém) dos “sujeitos da fala”, perde-se de vista aquele conjunto de questões vinculadas ao poder e à desigualdade (Ibid., pp. 183-189). Portanto, o modelo estruturalista, ao se abstrair da “parole” (i.e., fixando-se, exclusivamente, no código), tende a ignorar o sujeito da fala, suas práticas sociais e seu caráter de agente político (Ibid., p. 184), argumenta Fraser.
Embora essa dimensão da linguagem seja tratada como “uma prática social situada num contexto socialmente determinado”, os discursos não apenas são múltiplos e plurais, mas surgem, se modificam e desaparecem ao longo do tempo. Dessa forma, as identidades sociais não se constroem de forma definitiva: mudam juntamente com as práticas sociais e as lealdades dos agentes.  
Aqui, Nancy Fraser, refugiando-se no conceito gramsciano de “hegemonia”, elucida o debate sobre a interseção entre poder, desigualdade e discurso. Deve-se, nesse sentido, levar em conta a “lógica da hierarquização”, pois as identidades de gênero não se definem necessariamente de maneira igualitária – nem todos os discursos têm igual legitimidade (Ibid., p. 182), argumenta ela. Em contextos sociais diversificados, o “ser mulher”, por exemplo, configura-se não apenas pelo repertório de possibilidades com que opera, mas se constitui fundamentalmente de modo periférico ou latente.



Gramsci 1922
Em Gramsci, "hegemonia" é a "organização do consentimento".

Em situações caracterizadas por “desigualdades estruturais”, as definições e interpretações que vão contra o interesse da(s) mulher(es) ganham legitimidade através do discurso hegemônico. Nessa perspectiva, este se reproduziria ao estabelecer definições legítimas acerca das situações e das necessidades sociais, ou seja, delimitando as fronteiras entre os acordos (e desacordos) legítimos (e  legitimados) segundo a lógica de uma determinada agenda política (hegemônica).
De acordo com essa compreensão teórica de natureza “marxista”, esbarramos nesse ponto com aquelas descrições “autoevidentes” da/sobre (a) realidade social (i.e., os discursos “inquestionáveis” – descrições socialmente “necessárias” e com pretensões de validade permanente). Semelhantemente à noção de “ideologia”, a “hegemonia” se expressa na posição discursiva privilegiada dos grupos sociais dominantes. Parafraseando Marx, as ideias do “sexo” dominante são, em cada época, as ideias dominantes.
Como a legitimidade cultural está em constante negociação, em contínua disputa, “as perspectivas alternativas, as múltiplas posições de discurso, as disputas simbólicas pelos sentidos das práticas sociais, as lutas pelas definições hegemônicas e contra hegemônicas das situações sociais, os conflitos pela interpretação das necessidades sociais” (Ibid., p. 188), tornam-se, nesse aspecto, objetos de interesse, crítica e resistência no conjunto das práticas políticas emancipatórias.
Evidentemente, nosso interesse pela temática segue em diálogo com essa rica contribuição teórica, facilitando o redirecionamento radical de nossas categorias analíticas: em termos habermasianos, as relações de gênero, no contexto dos grupos religiosos, (também) precisariam ser analisadas à luz dos “fluxos comunicativos” (ver, principalmente, Robson SOUZA, 2015). Justamente dessa discussão nasceu o projeto “Religião, Gênero e Habilidades Sociais: Considerações acerca da Condição Feminina no Protestantismo Brasileiro”.
Trata-se de um projeto de pesquisa em fase de execução. A princípio, pretendemos analisar grupos evangélicos distintos e expressivos de 3 (três) capitais brasileiras (Recife, Vitória e Rio de Janeiro). Em contextos religiosos específicos, buscaremos verificar – de modo comparativo e interdisciplinar – em que medida as múltiplas configurações discursivo-teológicas presentes no protestantismo brasileiro de origem missionária e pentecostal dialogam (ou não) com as políticas públicas e culturais (ou mesmo iniciativas da sociedade civil) de enfrentamento ao “sexismo”, ao racismo e à intolerância religiosa.
Assim, através de entrevistas qualitativas com fiéis, pastoras(es) e lideranças políticas de expressivos segmentos religiosos, pretendemos fortalecer nossa compreensão acerca dos processos sociais que intervêm na construção e redefinição das relações sociais de gênero e étnico-raciais, seja no interior dos grupos religiosos identificados, seja no que se refere à interface entre esses movimentos religiosos e os contextos educacionais e culturais que lhe servem de suporte.
Produzindo dados, reflexão e conhecimentos sobre as percepções e práticas dos diferentes atores e atrizes envolvidos, pretendemos facilitar, no Estado e na sociedade civil, a difusão de uma agenda com ações e temas voltados à promoção dos direitos humanos, ao combate à violência de gênero e ao racismo, bem como inspirar o fortalecimento da implementação de políticas públicas de educação para a promoção do respeito ao pluralismo religioso. Nessa perspectiva, esse blog quer ser um canal de divulgação de nossa pesquisa. Contamos com a ajuda e o incentivo de todxs!

Robson da Costa de Souza é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciado em Ciências Sociais pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).

Referências
CORRÊA, Mariza. “Bourdieu e o sexo da dominação”. Revista Novos Estudos, CEBRAP, n. 54, pp. 43-53, jul. 1999.
FRASER, Nancy. Los usos y abusos de las teorías francesas del discurso para la política feminista. Diferencia(s): revista de teoría social contemporánea, v.1. n. 1, 2015, pp. 179-199. Disponível em: <http://www.revista.diferencias.com.ar/index.php/diferencias/issue/viewIssue/1/2>. Acesso em: 05 mai. 2016.
SOUZA, Robson. Pós-estruturalismo e religião: as novas possibilidades analíticas nos estudos sobre as relações sociais de gênero. Mandrágora, v.21. n. 1, 2015, pp. 207-236. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/6007/5062 >. Acesso em: 05 mai. 2016.