“A ambiguidade específica das escatologias da redenção subsiste ainda hoje.
Subsiste primeiramente na confusão que faz dos párias
ora o instrumento, ora o sujeito da redenção (...).
Na tentação de ligar o potencial emancipador da revolta
não a um projeto moral e político,
mas a uma natureza e, cada vez mais,
a uma cultura comum essencial que fixa as identidades hipostasiadas.
(...) na dificuldade de se desprender dos determinismos biológicos e históricos,
que fizeram do messianismo
tanto uma visão de revolta quanto uma visão de resistência.”
Subsiste primeiramente na confusão que faz dos párias
ora o instrumento, ora o sujeito da redenção (...).
Na tentação de ligar o potencial emancipador da revolta
não a um projeto moral e político,
mas a uma natureza e, cada vez mais,
a uma cultura comum essencial que fixa as identidades hipostasiadas.
(...) na dificuldade de se desprender dos determinismos biológicos e históricos,
que fizeram do messianismo
tanto uma visão de revolta quanto uma visão de resistência.”
Eleni Varikas
Em relação à “revolta pária na moral”, o que se deduz dessa discussão
“varikasiana” iniciada em nosso penúltimo post? Referindo-se à interpretação
nietzschiana acerca da “revolta dos grupos sociais mais desfavorecidos contra
as camadas privilegiadas” (Eleni VARIKAS, 2014, p. 134), o quinto capítulo do livro A Escória do Mundo (“Os últimos
serão os primeiros?”) faz o pensamento esbarrar com uma lógica discursiva
definida pela inversão religiosa da escala hierárquica dos valores dominantes. Nisso reside o ponto crucial da crítica da autora ao pensamento político do pária.
Embora
o interesse sociológico pela relação entre religião e emancipação política não
seja recente, o debate vem ganhando novos rumos ultimamente com a intervenção
de autores como: Boaventura de SOUSA SANTOS (2013), Slavoj ŽIŽEK (2008) e, mais
recentemente, Terry EAGLETON (2011). Em Eleni VARIKAS (2014), as práticas
políticas do pária também se vinculam, de alguma forma, à temática da religião.
Nesse aspecto, os enunciados que se seguem estão profundamente atrelados à
discussão iniciada em “Todos iguais... Todos?” - Eleni Varikas e as “antinomias do universalismo”. Por um lado, não custa lembrar o sentido dessa discussão: aqui, a palavra “pária” está sendo tomada como “metáfora política”. Por outro, a leitura e a compressão daquela breve exposição
são dadas como pressupostas neste texto.
Como uma ordem hierárquica se mantém viva? No plano da ideologia, é possível
que a conceptualização hegeliana do mundo tenha projetado em nossas próprias
circunstâncias históricas o “princípio protestante” e seu “Estado racional”,
conferindo à ordem estabelecida um caráter permanente no contexto de uma
progressão dialética do Espírito do Mundo (cf. István MÉSZÁROS, 2011). Aqui, a
partir de uma concepção hegeliana, ressalta-se o movimento de constituição da
sociedade civil e do Estado moderno.
Dialogando criticamente com essa
tradição, a noção marxiana de sociedade, engajada na busca dos mecanismos de
alienação e legitimação da ordem existente, relacionou (corretamente ou não) as
crenças religiosas (superestrutura ideológica) à infraestrutura material,
constituída pelas condições sociais da produção e da troca. Assim, nos quadros
teóricos estabelecidos, o fenômeno religioso foi associado, durante anos a fio,
à dominação das consciências e à alienação das massas.
"Se nada somos neste mundo, sejamos tudo."
Trecho de "A Internacional" (citado pela autora na epígrafe do capítulo 5).
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Mas
isso não é tudo: Eleni VARIKAS (2014)
está perfeitamente atenta ao desenvolvimento de escatologias messiânicas (religiosas
ou seculares) no contexto dos grupos menos favorecidos da sociedade. O
sofrimento do pária não apenas prepara a alma para a visão (os oprimidos
anseiam por sua libertação no além ou num futuro a construir aqui), mas também se apresenta
como um convite à resistência: afirmando-se em muitos casos como portadores de
uma “missão providencial”, os párias se veem investidos com a “responsabilidade ética da
redenção do mundo porque foram as vítimas e, muitas vezes, as vítimas ‘mais
antigas’ desse mundo” (2014, p. 144). A defesa do pária revela-se, ao final,
também uma escatologia: a “fé religiosa” pode se transformar rapidamente numa “fé política” (e vice versa).
Como
“cada fenômeno, ou tudo que acontece, falha a seu próprio modo, implica em seu
próprio cerne uma rachadura, um antagonismo, um desequilíbrio” (Slavoj ŽIŽEK, 2013), a autora também
está interessada em compreender o forte componente particularista presente na
reivindicação “universalista” do pária. É impossível não notar que, no
contexto da “militância pária”, a experiência da luta se configura muitas vezes
de maneira contraditória. Nesse aspecto, numa democracia liberal como a nossa, a militância
do pária só é permitida na medida em que funciona como a forma de aparição de
seu oposto:
O
desejo de encontrar uma cultura ou uma posição nas relações sociais, uma
experiência do sofrimento que estivesse dissociada do poder ou imunizada contra
ele, a ponto de fornecer uma perspectiva “universal”, mostrou-se eminentemente
problemático e cúmplice da transformação do universal em fortíssimo
particularismo (Eleni VARIKAS, 2014, p. 148).
De onde a autora extraí seus exemplos? Principalmente dos feminismos contemporâneos! Evidentemente,
o argumento dela nos leva novamente às formas essencialistas de pensar as
relações de gênero. No caso de uma reivindicação fundamentada no caráter
majoritário (e exclusivo) do grupo “mulheres”, as ambiguidades se manifestam numa decisão aprioristicamente articulada no âmbito da própria
militância – contextualizando o debate: aqui, por exemplo, entre as intérpretes feministas brasileiras, a exclusão do aliado “macho”, daqueles que, de alguma forma,
também se enxergam como defensores da causa das mulheres, tem se constituído tema de inevitável polêmica entre os atores sociais (ver o texto da filósofa Márcia TIBURI).
Ou,
nos termos recentes do debate acerca do “protagonismo das mulheres”, o grupo
oprimido pela “dominação masculina” quer se constituir em sujeito exclusivo de sua
própria emancipação. (A recente questão multiculturalista sobre a “apropriação cultural” e a discussão acerca das políticas identitárias entrariam também aqui?) Portanto, qual é a tese central de Eleni VARIKAS? O
combate à lógica hierarquizante da sociedade teria assumido, às avessas, a
percepção “essencialista, homogênea e heterodefinida da diferença” (Ibid., p. 143) - o “nós,
mulheres” contrapõe-se aos “omis”, no caso do “feminismo de facebook”, por exemplo. A propósito, em sua instigante análise
sobre o (mesmíssimo) assunto, Antônio Flávio PIERUCCI (1999) propôs, no contexto do cenário
acadêmico brasileiro, uma leitura bastante semelhante àquela encontrada no
livro “A Escória do Mundo”.
Esse
impasse indica que, de fato, talvez existam “problemas de gênero”, no sentido
de Judith BUTLER (2016). É exatamente dentro do terreno dessa reflexão que podemos
perceber as clivagens existentes entre orientações particularistas e
universalistas no contexto dos assim chamados “novos movimentos sociais” (sobre as
“diferentes definições das premissas da ordem política”, ver, principalmente, Shmuel
EISENSTADT, 2001).
No plano das discussões teóricas, é claro, permanecem as perguntas: Judith Butler ou Joan Scott? E como fica a situação dos homens no feminismo? Quanto
ao tema, ignorado muitas vezes (no discurso público) por aqueles a quem a causa
do pária realmente pouco importa, o autor desse blog não tomará partido nesse debate, entendendo
que, na história da política radical, como bem sabia Robespierre, a batalha
também pode se dar em “silêncio” (leia-se: o autor se vê engajado
na luta emancipadora radical, mas prefere se calar nesse momento). Permanecerá em silêncio não por não reconhecer
a importância da causa do pária, mas para que, em nome dessa mesma (e única) causa,
a polêmica seja evitada... P.S: Sobre o assunto, vale a “pena” consultar a bibliografia referenciada ao término desse texto. Trata-se de um debate que nunca se esgota...
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
EAGLETON, Terry. O Debate Sobre Deus – Razão, Fé e Revolução. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
EISENSTADT, S. N. “Modernidades múltiplas”. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 35, p. 139-163, 2001. Disponível em: <http://repositorio-iul.iscte.pt/bitstream/10071/404/1/35.06.pdf>. Acesso em: 12. jan. 2011.
MESZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência II. São Paulo. Boitempo, 2011.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo: Ed. 34, 1999.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, nº 2 ,jul./dez. 1995, pp. 71-99.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2013.
TIBURI, Márcia. Democracia hard: homens, feminismo e machismo ao contrário. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/06/democracia-hard-homens-feminismo-e-machismo-ao-contrario/. Acesso em: 23 Mai. 2016.
VARIKAS, Eleni. A Escória do Mundo: figuras do pária. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
____________. Os refugos do mundo: figuras do pária. Estud. av., São Paulo , v. 24, n. 69, p. 31-60, 2010 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 May 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142010000200003.
ŽIŽEK, Slavoj. A Monstruosidade de Cristo – Paradoxo ou Dialética. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2008.
___________. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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