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segunda-feira, 23 de maio de 2016

"Todos iguais... Todos?" - Eleni Varikas e as "antinomias do universalismo"

“O poder de identificar, de nomear, de definir o que é um homem, uma mulher, um judeu, um árabe, faz parte dos procedimentos de categorização hierárquica e de legitimação das instituições, das práticas, dos sistemas de valores, sobre os quais repousa essa categorização. Definir é um procedimento redutor e... implacável, exercido conforme a lógica da cópula: ‘é assim, não de outro modo.’”
Eleni VARIKAS

“A abstrata nudez de ser unicamente humano e nada mais.”
Hannah ARENDT

Nesses tempos de proliferação (não-totalizável) das diferenças múltiplas e plurais (sobre o assunto, ver, também, Antônio Flávio PIERUCCI, 1999), alguma categoria política seria forte (e abrangente) o suficiente para conseguir englobar satisfatoriamente a situação de exclusão vivida muitas vezes por atrizes e atores sociais tão distintos como mulheres, negros, "dissidentes" sexuais, judeus, trabalhadores imigrantes etc.?
Com o objetivo de buscar respostas para perguntas difíceis como essa, ninguém menos que Slavoj ŽIŽEK (2013) sugeriu recentemente o seguinte exercício teórico-prático: abstrair o fenômeno-a-ser-analisado de seu rico contexto histórico, buscando “perceber claramente a determinação conceitual que forma o núcleo da coisa”. A partir dessa provocação žižekiana, fica registrada aqui uma importante consideração: que nome dar à “coisa”? Pergunta-se de outro modo: é possível nomeá-la? Precisamos? Devemos? Queremos?
Eleni VARIKAS, autora de “A Escória do Mundo: figuras do pária” (livro publicado pela editora Unesp), assume para si essa árdua tarefa, arriscando-se encontrar no “pária”, palavra de significação dúbia e, muitas vezes, de sentido pejorativo no âmbito da linguagem, mas reconhecidamente presente no vocabulário político ocidental, essa designação possível (isto é, o debate não se refere apenas ao sistema de castas indiano, mas também ao pária enquanto metáfora política”. A discussão como um todo oscila entre essas duas significações).
Caminhando com o pressuposto de que dar voz (e palavra) ao sujeito excluído do/ pelo discurso hegemônico se constitui numa forma exemplar de “empoderamento” (início mesmo de uma emancipação que ainda não vale para todxs!), a autora desenvolve um diálogo crítico com a literatura: quer encontrar aquelas histórias que, “interligadas por uma rede de analogias, permitem aproximações inesperadas entre fontes variadas, diferentes momentos e versões diferentes de um mesmo relato” (2014, p. 25). São as histórias e lendas de párias!
De Mary Wollstonecraft, importante figura na publicização das demandas das mulheres por direitos iguais, à Flora Tristan, passando por outros filósofos(as) (tais como: Du Bois, Hannah Arendt, Walter Benjamin etc.), escritos e textos geralmente negligenciados pela história, o conjunto de “narrativas do pária” (e sobre o pária!) se faz presente num resgate histórico-literário promissor. Se, como quer György LUKÁCS (2011, p. 414), a literatura tem esse poder extraordinário de “apresentar de maneira figurada a gênese histórica concreta” de uma “totalidade histórica em devir”, constitui-se numa questão bastante complexa para ser abordada nesse breve texto. De qualquer forma, as “representações do pária” remetem à própria lógica da colonização, ou seja, acompanhando o movimento da “conquista”, entre os séculos XVI e XVIII, fazem parte, originalmente, de um “saber colonial” de portugueses, holandeses, franceses e ingleses.

Pariah woman in front of her hut, near Calcutta in 1851
Fonte: Wikimedia Commons
Aqui, a designação do “outro” extraeuropeu não fugiu aos mecanismos de inteligibilidade e hierarquização atreladas a um processo historicamente discursivo sobre o “si mesmo” europeu – nesse aspecto, não o “discurso do outro”, mas o discurso “acerca do outro” – a fala sobre o indivíduo que, na percepção do colonizador, estava na maioria das vezes destituído de agência e possibilidades de autoemanciapação (nos termos do historiador marxista Eric Hobsbawm, o “sistema de castas” não deixa de ser uma “tradição inventada”).
Nessa perspectiva, a “genealogia do pária” é caracterizada por tensões e ambivalências. Do ponto de vista meramente histórico, esse conhecimento sobre ele se transformou, ao longo dos anos, no próprio “motor” estruturador de uma administração colonial legitimada e regida fundamentalmente por “categorizações raciais”. Por outro lado, a contradição histórica tem a ver com o fato de que, no contexto da radicalização das Luzes, a figura do pária serviu de crítica à “autoridade arbitrária e à exclusão social e política” (ver, também, Eleni VARIKAS, 2010). 
Assim, após 1780, a adoção de um princípio universal de justiça encontrará na figura do pária, enquanto imagem dotada de “especificidade política” (segundo a autora, os chamados “privilégios negativos”...), o elemento necessário para se realizar o questionamento antiabsolutista da persistência de hierarquias no âmbito das sociedades ocidentais modernas, argumenta VARIKAS. Justamente dessas ambiguidades nasce uma rica metáfora sobre privilégios e exclusões...
Como não consegue se integrar plenamente no horizonte da universalidade burguesa (o tal conceito de “humanidade em geral”), a experiência do pária pressupõe o mais completo desenraizamento. Se, de um lado, a modernidade fez da humanidade o fundamento da comunidade política, de outro, favoreceu a constituição de uma cidadania incompleta para muitos: o pária é “membro de uma casta inferior numa sociedade sem castas. Uma sociedade que deixa perceber o sujeito individual de direitos tanto como átomo abstratamente similar e, por consequência, comparável a todos os outros (aos olhos da lei geral à qual está submetido) quanto como inseparável do grupo de que saiu e, assim sendo, incomparável aos outros (na perspectiva de seus direitos)” (cf. 2014, p. 83).
O destino deles, a exemplo de Phillis Wheatley, primeira mulher negra de origem africana a publicar um livro nos Estados Unidos, “dificilmente se inscreve nos relatos que estruturam nossa visão de modernidade ocidental”, continua VARIKAS (2014, p. 5). No plano das relações sociais, a identidade do pária é sempre-já tensionada por uma situação estrutural ambivalente: “não é tal indivíduo concreto com uma história, amigos, uma profissão, qualidade peculiares, mas o Judeu, o Negro, o Árabe, a Mulher em geral (2014, p. 84).
Nesse aspecto, não há como negar o fato de que, implícita ou explicitamente, a racionalidade dos excluídos e sua capacidade de ascender à humanidade plena, quer no contexto das experiências radicalmente democráticas da sociedade estadunidense, por exemplo, quer em nosso “Brasil brasileiro”, terra de Nosso Senhor e da tão aclamada “democracia racial”, foram sempre postas à prova, mesmo após as experiências abolicionistas do século XIX.
Pergunta-se nesse momento: o pária é uma construção de tipo-ideal (Max Weber)? No plano da abstração teórica, as figuras do pária emergem por meio de analogias. O que essas imagens revelam exatamente? A lógica da exclusão! Sua experiência torna-se sempre-já particularizada: “na medida em que a humanidade como sujeito e fonte de direitos é identificada com o grupo dominante e interpretada por ele, os dominados são colocados na dimensão do particular”, argumenta Eleni VARIKAS.
O pária não lida somente com a dinâmica do preconceito social (nos termos de VARIKAS, uma “percepção subjetiva da diferença do outro”). Embora submetida ao ordenamento jurídico de uma determinada sociedade, a subjetividade pária se vê constantemente excluída do conjunto de direitos que a maioria usufrui. Trata-se, portanto, de uma “condição social objetiva”, defende a autora (2014, pp. 76-82). Condição que se expressa, também, na percepção que o pária tem de si: ele se vê através do olhar inferiorizante do outro.
Nessa perspectiva, (querendo ou não) o pária está “marcado” socialmente (propositalmente entre aspas) – “marcado” como Mulher, Negro, Gay, Lésbica, Imigrante etc. Paradoxalmente, no plano da militância, as práticas políticas dos excluídos explicitam a possibilidade de se partir justamente dessa “marcação” (como sugere, por exemplo, a filósofa Márcia TIBURI), desenvolvendo aquilo que Eleni VARIKAS nomeia (corretamente ou não) de “dignidade pária” (2014, p. 90), mas não se trata evidentemente da única opção política disponível.
Portanto, as contradições da cidadania moderna também se expressam nas práticas políticas do pária – na luta contra a sua invisibilidade, o pária vislumbra a oportunidade de reivindicar, em termos fundamentalmente particularistas, um privilégio que não tem. Por outro lado, a aposta que VARIKAS faz no “pária rebelde” mostra os contornos precisos de uma visão política (ainda) atrelada ao UNIVERSALISMO IRRESTRITO da tradição das Luzes:
“(...) Essa capacidade de transformar a distância crítica num olhar telescópico sobre o mundo, projetado além de sua própria liberação, essa “paixão pela justiça” que impede de tomar sua própria causa como a causa prioritária ou universal, [Hannah] Arendt a atribui, com efeito, ao pária rebelde. Ela não é uma qualidade inerente à opressão, mas sobretudo um dom que o pária recebe assim que se desprende do fatalismo da oposição entre senhores e escravos, para transformar seu sofrimento e amargura na busca de uma justiça generalizada, reivindicada pela humanidade inteira” (Eleni VARIKAS, 2014, p. 146).
Em nosso próximo texto, veremos como essa temática complexa se articula à questão religiosa...

Robson da Costa de Souza é doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Licenciado em Ciências Sociais pela UMESP – Universidade Metodista de São Paulo. É pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
Referências
LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo: Boitempo, 2011.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo: Ed. 34, 1999.
TIBURI, Márcia. Democracia hard: homens, feminismo e machismo ao contrário. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/06/democracia-hard-homens-feminismo-e-machismo-ao-contrario/. Acesso em: 23 Mai. 2016.
VARIKAS, Eleni. A Escória do Mundo: figuras do pária. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
____________. Os refugos do mundo: figuras do pária. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 24, n. 69, p. 31-60,    2010 .   Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em:  22  May  2016.  http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142010000200003.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013. 

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