“O poder de
identificar, de nomear, de definir o que é um homem, uma mulher, um judeu, um
árabe, faz parte dos procedimentos de categorização hierárquica e de legitimação
das instituições, das práticas, dos sistemas de valores, sobre os quais repousa
essa categorização. Definir é um procedimento redutor e... implacável, exercido
conforme a lógica da cópula: ‘é assim, não de outro modo.’”
Eleni VARIKAS
“A abstrata nudez de
ser unicamente humano e nada mais.”
Hannah ARENDT
Nesses tempos de proliferação (não-totalizável) das diferenças múltiplas
e plurais (sobre o assunto, ver, também, Antônio Flávio PIERUCCI, 1999), alguma
categoria política seria forte (e abrangente) o suficiente para conseguir englobar
satisfatoriamente a situação de exclusão vivida muitas vezes por atrizes e atores sociais tão
distintos como mulheres, negros, "dissidentes" sexuais, judeus, trabalhadores
imigrantes etc.?
Com o objetivo de buscar respostas para perguntas difíceis como essa, ninguém
menos que Slavoj ŽIŽEK (2013) sugeriu recentemente o seguinte exercício teórico-prático:
abstrair o fenômeno-a-ser-analisado de
seu rico contexto histórico, buscando “perceber claramente a determinação
conceitual que forma o núcleo da coisa”. A partir dessa provocação žižekiana, fica
registrada aqui uma importante consideração: que nome dar à “coisa”? Pergunta-se
de outro modo: é possível nomeá-la? Precisamos? Devemos? Queremos?
Eleni VARIKAS, autora de “A Escória do Mundo: figuras do pária” (livro publicado pela editora Unesp), assume
para si essa árdua tarefa, arriscando-se encontrar no “pária”, palavra de significação dúbia e, muitas vezes,
de sentido pejorativo no âmbito da linguagem, mas reconhecidamente presente no
vocabulário político ocidental, essa designação possível (isto é, o debate não se refere apenas ao sistema de castas indiano, mas também ao pária enquanto “metáfora política”. A discussão como um todo oscila entre essas duas significações).
Caminhando com o pressuposto de que dar voz (e palavra) ao sujeito
excluído do/ pelo discurso hegemônico se constitui numa forma exemplar de
“empoderamento” (início mesmo de uma emancipação que ainda não vale para todxs!),
a autora desenvolve um diálogo crítico com a literatura: quer encontrar aquelas
histórias que, “interligadas por uma rede de analogias, permitem aproximações
inesperadas entre fontes variadas, diferentes momentos e versões diferentes de
um mesmo relato” (2014, p. 25). São as histórias e lendas de párias!
De Mary Wollstonecraft, importante figura na publicização das demandas
das mulheres por direitos iguais, à Flora Tristan, passando por outros filósofos(as) (tais como: Du Bois, Hannah Arendt, Walter Benjamin etc.),
escritos e textos geralmente negligenciados pela história, o conjunto de “narrativas do
pária” (e sobre o pária!) se faz presente num resgate histórico-literário promissor.
Se, como quer György LUKÁCS (2011, p. 414), a literatura tem esse poder
extraordinário de “apresentar de maneira figurada a gênese histórica concreta” de uma “totalidade histórica em devir”,
constitui-se numa questão bastante complexa para ser abordada nesse breve texto.
De qualquer forma, as “representações do pária” remetem à própria lógica da
colonização, ou seja, acompanhando o movimento da “conquista”, entre os séculos
XVI e XVIII, fazem parte, originalmente, de um “saber colonial” de portugueses,
holandeses, franceses e ingleses.
Fonte: Wikimedia Commons
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Aqui, a designação do “outro” extraeuropeu não fugiu aos mecanismos de
inteligibilidade e hierarquização atreladas a um processo historicamente discursivo
sobre o “si mesmo” europeu – nesse aspecto, não o “discurso do outro”, mas o
discurso “acerca do outro” – a fala sobre o indivíduo que, na percepção do
colonizador, estava na maioria das vezes destituído de agência e possibilidades de autoemanciapação (nos termos do
historiador marxista Eric Hobsbawm, o “sistema de castas” não deixa de ser uma
“tradição inventada”).
Nessa perspectiva, a “genealogia do pária” é caracterizada
por tensões e ambivalências. Do ponto de vista meramente histórico, esse conhecimento sobre ele se transformou,
ao longo dos anos, no próprio “motor” estruturador de uma administração
colonial legitimada e regida fundamentalmente por “categorizações raciais”. Por
outro lado, a contradição histórica tem a ver com o fato de que, no contexto da radicalização
das Luzes, a figura do pária serviu de crítica à “autoridade arbitrária e à
exclusão social e política” (ver, também, Eleni VARIKAS, 2010).
Assim, após 1780, a adoção de um princípio universal de justiça encontrará
na figura do pária, enquanto imagem dotada de “especificidade política”
(segundo a autora, os chamados “privilégios negativos”...), o elemento
necessário para se realizar o questionamento antiabsolutista da persistência de
hierarquias no âmbito das sociedades ocidentais modernas, argumenta VARIKAS. Justamente
dessas ambiguidades nasce uma rica metáfora sobre privilégios e exclusões...
Como não consegue se integrar plenamente no horizonte da universalidade
burguesa (o tal conceito de “humanidade em geral”), a experiência do pária
pressupõe o mais completo desenraizamento. Se, de um lado, a modernidade fez da
humanidade o fundamento da comunidade política, de outro, favoreceu a constituição
de uma cidadania incompleta para muitos: o pária é “membro de uma casta inferior
numa sociedade sem castas. Uma sociedade que deixa perceber o sujeito individual de direitos tanto como átomo abstratamente similar e, por consequência, comparável a todos os outros (aos olhos da lei geral à qual está submetido) quanto como inseparável do grupo de que saiu e, assim sendo, incomparável aos outros (na perspectiva de seus direitos)” (cf. 2014, p.
83).
O destino deles, a exemplo de Phillis Wheatley, primeira mulher negra de
origem africana a publicar um livro nos Estados Unidos, “dificilmente se
inscreve nos relatos que estruturam nossa visão de modernidade ocidental”,
continua VARIKAS (2014, p. 5). No plano das relações sociais, a identidade do
pária é sempre-já tensionada por uma situação estrutural ambivalente: “não é tal indivíduo
concreto com uma história, amigos, uma profissão, qualidade peculiares, mas o
Judeu, o Negro, o Árabe, a Mulher em geral (2014, p. 84).
Nesse aspecto, não há como negar o fato de que, implícita ou explicitamente, a racionalidade dos excluídos e sua capacidade de ascender à
humanidade plena, quer no contexto das experiências “radicalmente” democráticas da sociedade
estadunidense, por exemplo, quer em nosso “Brasil brasileiro”, terra de Nosso
Senhor e da tão aclamada “democracia racial”, foram sempre postas à prova,
mesmo após as experiências abolicionistas do século XIX.
Pergunta-se nesse momento: o pária é uma construção de tipo-ideal (Max Weber)?
No plano da abstração teórica, as figuras do pária emergem por meio de analogias. O que essas imagens revelam exatamente? A lógica da exclusão! Sua
experiência torna-se sempre-já particularizada: “na medida em que a humanidade
como sujeito e fonte de direitos é identificada com o grupo dominante e
interpretada por ele, os dominados são colocados na dimensão do particular”,
argumenta Eleni VARIKAS.
O pária não lida somente com a dinâmica do preconceito social (nos termos
de VARIKAS, uma “percepção subjetiva da diferença do outro”). Embora submetida
ao ordenamento jurídico de uma determinada sociedade, a subjetividade pária se
vê constantemente excluída do conjunto de direitos que a maioria usufrui.
Trata-se, portanto, de uma “condição social objetiva”, defende a autora (2014,
pp. 76-82). Condição que se expressa, também, na percepção que o pária tem de si:
ele se vê através do olhar inferiorizante do outro.
Nessa perspectiva, (querendo ou não) o pária está “marcado” socialmente (propositalmente
entre aspas) – “marcado” como Mulher, Negro, Gay, Lésbica, Imigrante etc. Paradoxalmente, no plano
da militância, as práticas políticas dos excluídos explicitam a possibilidade de
se partir justamente dessa “marcação” (como sugere, por exemplo, a filósofa Márcia TIBURI),
desenvolvendo aquilo que Eleni VARIKAS nomeia (corretamente ou não) de “dignidade
pária” (2014, p. 90), mas não se trata evidentemente da única opção política disponível.
Portanto, as contradições da cidadania moderna também se expressam nas
práticas políticas do pária – na luta contra a sua invisibilidade, o pária vislumbra a oportunidade de reivindicar, em termos fundamentalmente particularistas, um privilégio que não
tem. Por outro lado, a aposta que VARIKAS faz no “pária rebelde” mostra os
contornos precisos de uma visão política (ainda) atrelada ao UNIVERSALISMO
IRRESTRITO da tradição das Luzes:
“(...) Essa capacidade de transformar a distância crítica num olhar telescópico sobre o mundo, projetado além de sua própria liberação, essa “paixão pela justiça” que impede de tomar sua própria causa como a causa prioritária ou universal, [Hannah] Arendt a atribui, com efeito, ao pária rebelde. Ela não é uma qualidade inerente à opressão, mas sobretudo um dom que o pária recebe assim que se desprende do fatalismo da oposição entre senhores e escravos, para transformar seu sofrimento e amargura na busca de uma justiça generalizada, reivindicada pela humanidade inteira” (Eleni VARIKAS, 2014, p. 146).
Em nosso próximo texto, veremos como essa temática complexa se articula à questão religiosa...
Referências
LUKÁCS, György. O romance histórico. São Paulo:
Boitempo, 2011.
PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da Diferença. São Paulo: Ed.
34, 1999.
TIBURI, Márcia. Democracia hard: homens, feminismo e
machismo ao contrário. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/06/democracia-hard-homens-feminismo-e-machismo-ao-contrario/.
Acesso em: 23 Mai. 2016.
VARIKAS, Eleni. A Escória do Mundo: figuras do pária.
São Paulo: Editora Unesp, 2014.
____________. Os refugos do
mundo: figuras do pária. Estud. av., São Paulo ,
v. 24, n. 69, p. 31-60, 2010
. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142010000200003&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 22 May
2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142010000200003.
ŽIŽEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do
materialismo dialético. São Paulo: Boitempo, 2013.
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