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quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Religião, Gênero e Habilidades Sociais no Seminário em Rede da Fundaj

Religião, Gênero e Habilidades Sociais:

O interesse sociológico pela relação entre religião e “esfera pública”


"– Minha identidade religiosa é uma coisa muito complicada (...) De 'bate-pronto', eu me declaro católica, mas, na prática, eu acho que eu não sei mais o que eu sou (...) Como você costuma dizer, o 'fiel é infiel'... Mesmo no tempo de muita adesão, de muito investimento religioso, eu sempre tive as minhas convicções. (...) Eu sempre tive as minhas vivências; eu não deixei de viver alguma situação na vida afetiva porque eu tava na igreja. (...) Eu tava em busca de ser feliz. '– Ah, você só pode ser feliz com os irmãos da igreja' (...) Aí você olha para os irmãos da igreja e fala: '– não, ninguém tem meu perfil aqui. Então, não vai rolar aqui (...)'. Aí você começa a fazer concessões; aí você começa a se desamarrar um pouco daquela coisa tão rígida que você ouve, que você acredita; e aí você começa a questionar aquilo; e você começa a criar 'brechas' para você. Então, 'sim', é possível você viver experiências emancipatórias mesmo [estando] muito atrelado à religião". 
 Alessandra*, 42 anos (ex-evangélica)

 
Religião, Gênero e Habilidades Sociais é um desdobramento dos estudos que venho realizando desde o período da graduação. Trata-se de um projeto em execução no âmbito da Fundação Joaquim Nabuco (PE) e que se insere nos estudos da temática de gênero e do fenômeno religioso contemporâneo, de um lado, e no interesse sociológico pela relação entre religião e “esfera pública”, de outro.  Comparando grupos evangélicos distintos e expressivos de 3 (três) capitais brasileiras (Recife, Vitória e Rio de Janeiro), busca-se verificar – em contextos religiosos específicos e de modo interdisciplinar – em que medida a diversidade de configurações discursivo-teológicas presentes no protestantismo brasileiro de origem missionária e pentecostal dialogam (ou não) com as políticas públicas e culturais (ou mesmo iniciativas da sociedade civil) de enfrentamento ao “sexismo”, ao racismo e à intolerância religiosa.

Através de entrevistas qualitativas com fiéis, pastoras(es) e lideranças políticas de expressivos segmentos religiosos, estamos fortalecendo nossa compreensão acerca dos processos sociais que intervêm na construção e redefinição das relações de gênero e étnico-raciais, seja no interior dos grupos religiosos identificados, seja no que se refere à interface entre estes movimentos religiosos e os contextos educacionais e culturais que lhe servem de suporte.

Atualmente, temos analisado, de modo interdisciplinar e comparativo, sob a ótica das mulheres evangélicas, dados coletados (entrevistas) na cidade do Recife e nas Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro e de Vitória, em especial nos municípios de Niterói, do Rio de Janeiro, de Vitória e de Vila Velha, sobre essas denominações religiosas, procurando trazer, nesse aspecto, elementos acerca da forma como as próprias entrevistadas percebem suas trajetórias, retrospectiva e prospectivamente.

Por se tratar de uma pesquisa que envolve, numa perspectiva pós-estruturalista, tanto a identificação como a comparação de grupos evangélicos distintos e significativos (batistas, presbiterianos, metodistas, episcopais, pentecostais e representantes de igrejas neopentecostais), o desenvolvimento de uma abordagem teórico-metodológica pautada nos “processos discursivos da vida social” (religião tratada fundamentalmente como “discurso”) tornou-se fundamental não apenas à investigação da diversidade de configurações discursivo teológicas presentes no protestantismo brasileiro, como também o mapeamento das experiências que informam as convergências e divergências presentes nas falas das(os) entrevistadas(os).

Orientando-se por uma proposta de compreensão que atua fundamentalmente no nível do discurso (linguagem e interpelação), a pesquisa permite, inclusive, sob a lógica do “descentramento do sujeito”, visualizar a “fluidez” das identidades religiosas envolvidas (caracterizada por uma instabilidade intrínseca ao próprio sujeito contemporâneo, diga-se de passagem, que nunca atinge sua plena “identidade-de-si”), além de pressupor, de antemão, nos termos de Laclau & Mouffe (2015), um campo de operação carente de totalidade: cada identidade particular se torna, no “jogo” da différance (Derrida), uma identidade em virtude de sua localização relativa num “sistema aberto” de relações diferenciais.

À luz dessa compreensão mais ampla acerca da noção de “agência” (agency), é possível afirmar que, de modo geral, o “sujeito religioso”, mesmo nos momentos de intensa adesão, tende a desenvolver práticas (e convicções) que passam a funcionar com relativa independência em relação aos espaços religiosos de pertencimento (engendra-se, nessa perspectiva, uma subjetividade que age fundamentalmente nas “brechas” do discurso institucional, segundo a percepção de uma entrevistada recente).

Portanto, o pleno desenvolvimento da pesquisa envolve, necessariamente, a construção de um modelo abstrato acerca da rede de circulação de categorias discursivas de natureza religiosa (cf. SOUZA, 2016). Aqui, destaca-se a necessidade de: (a) em termos foucaultianos, localizar onde os dispositifs se reforçam mutuamente; (b) compreender as condições nas quais a eficácia performativa deles torna-se momentaneamente suspensa na dinâmica dessas redes religiosas; (c) apreender, sob essas novas possibilidades analíticas, as questões que envolvem a relação entre os fenômenos religiosos e a esfera pública, sobretudo no tocante aos rebatimentos dos discursos religiosos sobre as políticas educacionais e culturais.

Com isso, não se quer negar, no que diz respeito às relações sociais de gênero, aquela dimensão “estrutural” muitas vezes associada à presença de um discurso religioso que tende não apenas a reforçar os “papéis tradicionais” de gênero, mas também, em algumas situações e de forma muito mais grave, a legitimar as violências física e simbólica sofridas pelas mulheres, na medida em que lhes dificulta o acesso à esfera dos direitos, seja no interior das igrejas, por meio de uma “matriz teológica” que desloca as mulheres para os “bastidores” das denominações religiosas (ibid., 2009), seja no contexto da sociedade mais ampla, sobretudo no tratamento da sexualidade (ibid., 2015).

Justamente nesse cenário complexo e ambivalente, o conceito de “gênero” emerge como uma questão de disputa “aberta” no contexto da arena pública brasileira (ver, principalmente, SOUZA, 2017). De certa forma, a visão de mundo promovida pelos “estudos de gênero”, especialmente a rejeição de uma “lógica binária”, tende a assustar as atrizes e atores cristãos, em geral, e os evangélicos brasileiros, em particular. Aqui, o medo religioso muitas vezes se expressa, entre católicos e evangélicos, principalmente no que diz respeito às revisões nos arranjos afetivos e sexuais (e, às vezes, na incapacidade de lidar com a noção de “diversidade”).

Em termos gramscianos, o que realmente está em jogo nesse debate mais amplo sobre a temática de gênero é a legitimidade cultural de uma categoria analítica. Entretanto, afirmar o caráter agonístico de nossa sociedade, em que distintas visões de mundo, percepções na maioria das vezes conflituosas competem, por meio da lógica do dissenso, pelo acesso ao Real, significa dizer que o próprio espaço religioso, internamente aos grupos e denominações evangélicas estudados, é marcado por lutas e contradições, como evidencia, por exemplo, a recente disputa aberta, suscitada, principalmente, por protestantes brasileiros assumidamente contrários às lógicas que se tornaram hegemônicas em suas respectivas igrejas, pelos usos e sentidos da palavra “evangélico” no espaço político dos duelos discursivos e simbólicos.

Portanto, no âmbito da pesquisa em andamento, as análises sobre esses novos horizontes epistêmicos abertos por práticas anômalas (ou mesmo subversivas) desenvolvidas no contexto das relações sociais diárias têm, por um lado, procurado explicitar, ainda que de forma tímida, os limites das categorias pelas quais muitos cientistas sociais insistem em compreender esses universos religiosos (a noção de fundamentalismo religioso, p.ex., parece-me precária, nesse sentido). Por outro, a proliferação de diversas instituições culturais e sujeitos coletivos no espaço público brasileiro levanta uma série de indagações científicas sobre as especificidades e os limites do pertencimento – e participação ativa – em uma mesma comunidade política, vinculando-se, nesse sentido, ao estudo da problemática acerca dos embates (reais e simbólicos) processados na dinâmica dos processos sociais contemporâneos.

Como a relação existente entre subjetividades e formações sociais é compreendida numa perspectiva dialética, a pesquisa como um todo se alterna entre o exame acerca do desenvolvimento das competências sociais e dispositivos específicos de ação, ao nível micro, e a análise sobre o refluxo das orientações daí decorrentes no contexto de processos culturais e políticos mais abrangentes, ao nível macro. Trabalhamos, portanto, na interface da dimensão religiosa com seu ambiente sociocultural. Produzindo dados, reflexão e conhecimentos sobre as percepções e práticas dos diferentes atores e atrizes envolvidos, pretendemos facilitar, no Estado e na sociedade civil, a difusão de uma agenda com temas e ações voltadas à promoção dos direitos humanos, ao combate à violência de gênero e ao racismo, bem como fortalecer a implementação de políticas públicas de educação para a promoção do respeito ao pluralismo religioso e da diversidade. Nesse aspecto, a dimensão política da pesquisa tem a ver com o fato de que, em alguns casos, as próprias entrevistadas enxergaram a contribuição delas como uma expressão de luta, de militância.


OBS: Apresentação disponível no seguinte link.


Robson da Costa de Souza (pesquisador na Fundação Joaquim Nabuco)

* Objetivando preservar a identidade da informante, o nome apresentado é fictício.

Referências

LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista. São Paulo: Intermeios, 2015.
SOUZA, Robson. Discursos e práticas fundamentalistas na Igreja Presbiteriana do Brasil (2002-2008): uma análise da pretensa posição de equidistância dos extremos fundamentalistas e liberais. 142p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2009. Disponível em:  <http://tede.metodista.br/jspui/bitstream/tede/493/1/Robson_Costa_Souza.pdf>. Acesso em: 03 fev. 2009.
_______________. Mulheres evangélicas e práticas religiosas: uma análise comparativa na perspectiva de gênero. 189p. Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ, 2013. Disponível em:< https://minerva.ufrj.br/>. Acesso em: 19 nov. 2013.
_______________.  Pós-estruturalismo e religião: as novas possibilidades analíticas nos estudos sobre as relações sociais de gênero. Mandrágora, v.21. n. 1, 2015, p. 207-236. Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/6007/5062>. Acesso em: 13 jun. 2016.
_______________.  Religião, Gênero e Habilidades Sociais: Uma contribuição teórica à análise sobre a condição feminina no protestantismo brasileiro. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS., 40., 2016, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2016. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/40-encontro-anual-da-anpocs/st-10/st29-3/10455-religiao-genero-e-habilidades-sociais-uma-contribuicao-teorica-a-analise-sobre-a-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file. Acesso em: 12 ago. 17.
_______________. Religião, Gênero e Pluralismo: uma análise acerca da condição feminina no protestantismo brasileiro. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS., 41., 2017, Caxambu-MG. Anais... Caxambu-MG: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2017. Disponível em: http://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/gt-30/gt24-18/10828-religiao-genero-e-pluralismo-uma-analise-acerca-da-condicao-feminina-no-protestantismo-brasileiro/file. Acesso em: 30 nov. 2017.