Texto utilizado na mesa de abertura do Seminário em Rede Educação e Relações Étnico-Raciais – “Etnicidade, Gênero e Educação” (2016)
A
título de SAUDAÇÃO, a minha breve provocação se chama “Por que falar de gênero
na atualidade?”, mas, levanto em conta o atual cenário político, bem que
poderia se inscrever, ela mesma, na esfera dos direitos democráticos, tendo o
seguinte nome: “Direito a falar de gênero”. Aqui, dedico o introito que se
segue a “todxs” (deste modo mesmo: com “x”...) que entendem a urgência desse
debate no contexto da sociedade brasileira.
Desde
os anos 1970, a categoria “gênero”, no plano teórico, tem sido usada em estudos
sobre “permanências e transformações das lógicas socioculturais”. Na década de
1990, o termo se desloca para a esfera política, constituindo-se, no âmbito das
políticas públicas, numa ferramenta conceitual inevitavelmente associada às lutas
sociais e correntes feministas em vários países do mundo (cf. Sônia CORRÊA,
2011, pp. 339-344).
De
um lado, “gênero” não pretende ser uma discussão “autorreferente” (como sugere erroneamente
quem se opõe ao debate). Como “a lógica interna de qualquer campo particular de
estudo aponta para além de sua própria parcialidade” (cf. István MÉSZÁROS,
2008), os estudos de gênero ganham legitimidade NA MEDIDA em que se conjugam
com importantes análises “engendradas” em outros campos discursivos, tais como:
Educação, a esfera das análises sobre as relações étnico-raciais, o campo da luta
política por reconhecimento social junto à sociedade civil e ao Estado – os
debates sobre as “ações afirmativas” etc.
De
outro, não é “reflexo ideológico” (conceito oriundo da distinção consciência/
matéria, mas que, no senso comum, tem um sentido adverso), posto que se baseia
numa questão REAL relacionada de modo vital a pluralidade REALMENTE
existente das experiências concretas que se oferecem aos sujeitos sociais na
contemporaneidade. Quer dizer, opondo-se, em princípio, a qualquer forma de discurso
com pretensão “universalizante” (e, frequentemente, “essencialista”...),
“gênero” não parte de um modelo abstrato enraizado na “biologia” dos indivíduos
– e certamente muito menos da “natureza” ou do discurso religioso.
Fonte: pixabay.com |
Por
se fundamentar na possibilidade genuinamente utópica de uma sociedade mais
democrática e mais justa, “gênero”,
enquanto categoria de análise histórica, recusa-se a assumir acriticamente o
existente como “simplesmente dado” (como faz, p.ex., o “positivismo
metodológico”). Portanto, falar sobre “ideologia de gênero” em oposição à
“discussão sobre gênero” é uma grosseira deturpação baseada na ignorância
espantosa de dois termos caros à análise crítica da realidade social: gênero e
ideologia.
Evidentemente,
no espaço político dos duelos discursivos e simbólicos, a visão de mundo
promovida pelos “estudos de gênero”, especialmente a rejeição de uma “lógica
binária”, tende a assustar os críticos conservadores (cf. Robson SOUZA, 2015). Não
é por acaso que o conceito de gênero emerge, na incessante “batalha discursiva”
pela emancipação humana, como uma questão de disputa “aberta” no contexto da
arena pública: os antagonismos presentes só se tornam “legíveis” do ponto de
vista do campo das transformações sociais.
É
por isso que, sem querer polemizar, Richard RORTY (1996) diz algo bastante
sugestivo quando escreve: “o modo mais eficiente de expor ou desmistificar uma
prática existente parece consistir em sugerir uma prática alternativa, e não
criticar a atual”. Por ora, eu caminharia com o juízo de que a crítica feminista eficiente consegue realizar
satisfatoriamente ambas as coisas: “gênero” não é apenas uma teoria das
“relações sociais de sexo”, mas simultaneamente uma teoria da prática
revolucionária. Sobre os diversos “feminismos”, ver a forma como o próprio movimento
de mulheres se autocompreende em CLACSO TV:
Considerando
a permanência, no contexto de nossas relações sociais, de uma lógica discursiva
onde as mulheres aparecem muitas vezes como “subalternizadas”, violentadas sob
as mais diversas formas (ver Sandra AZERÊDO, 2007), muito mais importante é que
esse “falar sobre gênero” torna-se extremamente necessário, inevitável, ou
seja, não podemos simplesmente passar pelo reconhecimento dessa necessidade e
seguir adiante: é somente atendo-se “excessivamente” a esse debate, que contribuiremos
para a transformação de nossa realidade histórica.
É
exatamente nesse cenário que o Seminário
em Rede Educação e Relações Étnico-Raciais, evento promovido pela Fundaj – Fundação
Joaquim Nabuco, procura fortalecer, em nosso contexto institucional, os espaços
de diálogo e reflexão sobre a temática proposta. Falemos então de gênero!
Conversemos sobre “Etnicidade, Gênero e Educação”, com a profª Drª Rita Segato
(conferência de abertura), bem como acerca
dos enfrentamentos ao racismo e às violências de gênero (mesa 1). Lutemos, enquanto cidadãos politicamente engajados, por
uma educação de promoção do respeito às diversidades étnico-raciais e de gênero
(mesa 2). Finalmente, compartilhemos
nossas experiências exitosas, motivando nossas companheiras e companheiros de
luta (mesa 3). Excelente evento a todxs!
Crédito: Fundaj/Divulgação |
Referências
AZERÊDO,
Sandra. Preconceito contra a “mulher”:
diferença, poemas e corpos. São Paulo: Cortez Editora, 2007.
CORRÊA,
Sonia. O conceito de gênero: teorias, legitimação e usos. In: BARSTED, Leila
(Org.). O Progresso das Mulheres no
Brasil 2003–2010. Rio de Janeiro: CEPIA; Brasília: ONU Mulheres, 2011. pp.
339-345. Disponível em: http://onumulheres.org.br/wp-content/themes/vibecom_onu/pdfs/progresso.pdf.
Acesso em: 13 jun. 2016.
MÉSZÁROS,
István. Filosofia, ideologia e ciência
social. São Paulo: Boitempo, 2008.
RORTY,
Richard. Feminismo, Ideologia e Desconstrução. In: ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996. cap. 10, p. 227-234.
SOUZA,
Robson. Pós-estruturalismo e religião: as novas possibilidades analíticas nos
estudos sobre as relações sociais de gênero. Mandrágora, v.21. n. 1, 2015, pp. 207-236. Disponível em:
<https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/MA/article/view/6007/5062
>. Acesso em: 13 jun. 2016.